Haveres
Um dia, perguntei pra Vó se a casa onde morava sua patroa, a professora de piano, era alugada.
⸻ Não! Claro que não. É própria. Herança.
Quando eu ouvia uma palavra nova, procurava saber do que se tratava, pra arquivar no espaço certo. Eu guardava as palavras na minha mente como se fosse em gavetas. Eu ainda guardo.
⸻ Herança? O que é?
⸻ Coisa que os filhos ganham dos pais. Que os netos recebem dos avós…
⸻ Ah!
Herança não foi para o lugar onde eu havia guardado aluguel, despejo, fiado, relento, miséria…precisei inaugurar uma gaveta pra acomodar a novata.
⸻ E o que eu vou ganhar de herança?
A resposta veio em gargalhada. Não entendi. Eu era filha, afinal. E neta. De todo modo, eu gostava tanto quando Vó ria alto. Fiquei achando que podia ser um bom sinal. Ela era enigmática. Eu levava tempos matutando sobre as incógnitas que me lançava. Eu ainda levo.
Em outra ocasião, estávamos ouvindo nossos discos e ela pediu:
⸻ Põe o do Martinho. O da capa azul. Põe do lado que está marcado.
O lado marcado à caneta, continha sua música preferida. Ela fazia isso em todos os discos. Era só pra isso que Vó usava a caneta.
⸻ Não sei ler, nem escrever.
Quantas vezes a ouvi repetir essa frase? Quando íamos ao hospital e era preciso assinar a ficha. Nas reuniões da escola. No Centro de pai Dirceu, na hora de anotar o nome dos enfermos no caderno de oração. Ela falava de um jeito descontraído. Tinha mania de amaciar. Não queria que ninguém se sentisse culpado porque ela não era alfabetizada. Então, procurava fazer parecer que aquilo não a afetava. As pessoas ensaiavam lamentar, mas aceitavam a gentileza que ela oferecia. De carregar sozinha o fardo da desigualdade. Do abandono. Mas eu sentia o peso daquelas palavras. Eu ainda sinto.
⸻ Então. Põe o do Martinho.
Eu me distraia com facilidade. Eu ainda me distraio.
O tequetequeteque da canção começou. Vó, danou saracotear. Eu também. Ela contou que me esperou chegar da maternidade ouvindo aquele álbum no último volume, que era pra eu me acostumar ao ritmo da casa.
“Canta, canta, minha gente, deixa a tristeza pra lá,
Canta forte, canta alto, que a vida vai melhorar…”
A primeira canção que ouvi. O início da trilha sonora que ainda estou selecionando. É culpa de Vó, o meu vício pelo samba. Tanta coisa aconteceu por influência dela. Suas divagações me provocavam.
⸻ Deus criou o mundo. O diabo inventou a cerca.
Passei anos tentando compreender o que significava essa sentença. E tantas outras. Procurando entender a gargalhada que ela soltou quando eu quis saber sobre a minha herança. Eu perseguia respostas. Eu ainda persigo.
Quando eu aprendi a ler, foi como se Vó também tivesse aprendido. Li uma porção de coisas pra ela. Coisas que devem tê-la torturado de curiosidade a vida inteira. Placas e cartazes. Pichações nos muros, um bocado de manchetes nos jornais pendurados nas bancas, as siglas forjadas nas tampas dos bueiros. Ela tinha o direito de saber de tudo. No supermercado da avenida, gastávamos tempo estudando as embalagens.
⸻ Estas bolachas são da marca “Bico doce”. A barra de sabão, se chama “Tudo limpo”. Ali está o arroz “Branco solto”. Temos também a farinha de trigo “Bolo fofo”.
Ela ria. Ou arregalava os olhos e segurava o queixo com as mãos, analisando a lógica do que ia conhecendo. Até os nomes dos mortos nos túmulos do cemitério da Vila, eu li em voz alta para ela. Eram momentos de êxtase e reflexão.
⸻ Nossa! Deve ser o primo de fulano. Cunhado de beltrana…ah!
Quando, pela primeira vez, dei sinal para o ônibus certo sem precisar pedir ajuda a ninguém, a caminho da consulta no INAMPS, Vó embarcou orgulhosa daquela autonomia. Reparti com ela a minha leitura e a minha escrita. Emprestei meus olhos e as minhas mãos. Era tudo nosso. Até as dores. Inscrevi os enfermos para os quais ela pedia cura, no caderno de oração. Quantos ela bem quis. E também fiz favores para muitas de suas camaradas de ofício, mulheres quase sempre pretas, mas certamente sempre pobres, como nós. Os dedos de prosa aconteciam nos portões dos palacetes, enquanto elas varriam as calçadas. Na feira, quando iam buscar ingredientes frescos para o preparo das refeições servidas rigorosamente no horário determinado. E em outros momentos, às vezes até descontraídos, quando elas se reuniam para compartilhar experiências e fatos escabrosos ocorridos nas casas das famílias castas. Passei a ler receitas médicas, telegramas, informações em catálogos de cosméticos, recibos de quitação do armazém. E até escrevi cartas para entes queridos que aguardavam notícias em cidades distantes. Aquelas minhas tias também não sabiam ler, nem escrever, mas eram como continentes de sabedoria. Me ensinavam muitas maravilhas. Trocávamos desenvolturas. Era tudo nosso.
Eu queria poder voltar no tempo. Acho que, das coisas que já vi nos filmes, essa possibilidade foi sempre a que mais me impressionou. Poder visitar o passado. Eu daria tantos abraços. Beijaria tantas mãos, pedindo bençãos. Mas também tiraria muita satisfação. Com uma tal de madrinha velha, por exemplo. Era assim que Vó chamava a mulher que prometeu cuidar dela quando era criança. A mulher que só fez maltratá-la. Eu queria poder voar no pescoço da referida tutora. Da maldita que determinou ser a vida da minha querida insignificante a ponto de não permitir que ela frequentasse a escola. O cuidado oferecido foi trabalho escravo e seus complementos: castigos, surras, ofensas, privação. E a escravizadora ainda se vangloriava, alegando que era o seu jeito de educar, de proteger. Que seria mais útil para Vó, no futuro, saber lidar numa casa e no roçado, do que ser alfabetizada. Eu estive nesse futuro. Fiz parte dele. Testemunhei os resultados obtidos com os métodos educativos e de proteção aplicados pela tirana ordinária. Todas as vezes em que Vó relembrava os episódios de tortura, seus olhos se distanciavam, seu rosto se desfigurava. Eu chorava por dentro. Nas minhas divagações, eu voltava no tempo. E me vingava. Eu sonhava com isso. Eu ainda sonho. Em abordar os patrões que seguiram explorando a existência de Vó, e declarar o quanto os desprezava. Eu ainda desprezo. Repudiava seus brasões, suas memórias. Suas almas. Se é que as tinham. Eu ainda repudio. Me lembro dos requintes de mesquinhez que sobejavam das mesas infames onde eles se fartavam. Não permitiam que compartilhássemos dos finos manjares que as mãos abençoadas de Vó preparavam com os refinados ingredientes que eles adquiriam à custa de exploração. Nem dos utensílios que compunham os enxovais de suas mansões. Eram uns miseráveis. Eu queria poder dizer que se eles sentiam nojo da gente, eu também sentia nojo deles. Eu ainda sinto.
Eu agradeceria aos cretinos que se recusaram a ocupar assentos vagos ao lado de Vó nos trens e ônibus pela vida. Ela percebia. E me contava.
⸻ Devem pensar que tenho alguma doença contagiosa.
Queria dizer a eles que foi melhor assim. Evitaram que ela tivesse o desprazer de sentir o mau cheiro que exalavam. Racistas desgraçados. Mas eu continuo aqui. No futuro. Não posso voltar no tempo, efetivamente. Embora eu retorne sempre, de algum jeito, para não esquecer tudo o que aconteceu. Para me certificar de que não seguirei o conselho conveniente dos que afirmam que não vale a pena remoer. Que é preciso seguir sem mágoas, sem rancor. Dispenso o conselho. Eu não quero esquecer. Principalmente agora, que sei quem é o diabo, o que inventou a cerca. E sei que ele tem muitos secretários. Uma equipe de hienas carniceiras, especializadas em construir cercas. Para se apropriarem, se apossarem de tudo o que as interessa. Ou, para aprisionar quem consideram uma ameaça. Sei também, qual é a minha herança: o disco do Martinho, o da capa azul, que não vendo e nem troco por valor algum. E o do Roberto Ribeiro que diz: todo menino é um rei. Minha herança, é me levantar sem rumo de manhã e ouvir Clara Nunes sussurrar nos meus fones de ouvido que, um dia, hei de ver o meu povo feliz a cantar. E encontrar o rumo. É acreditar na profecia de João Nogueira, de que vai resplandecer. Minha herança é Candeia, é Cartola. Zé Keti, Ivone Lara, Rainha Quelé e Nelson Cavaquinho. É Elza Soares, é Aparecida. É tudo o que Vó me apresentou durante o tempo em que andamos de mãos dadas a caminho das casas herdadas por nossos patrões. Ela dizia nossos, pra tornar mais leve o dia em que chegasse a minha vez de ir sozinha. Vó, e sua mania de amaciar. Ela fazia de bom coração. Eu queria tê-la tranquilizado. Explicado que as cercas não me detêm. Nada recebi, dos que as instalam, portanto, a eles, nada devo. Não tenho obrigação com seus padrões. Nem com suas normas. Pelos de minha aldeia sim, assumi compromissos. Pelos netos e bisnetos, pela linhagem de tantas avós que, assim como a minha, desejaram que vivêssemos melhores dias. Espero que caiam em desuso o aluguel, o relento e a miséria. Que esses vocábulos pereçam esquecidos em arquivos emperrados. E que a herança deixe de repousar nas gavetas dos privilegiados.
Então, escrevo. Especialmente, porque Vó achava bonito. Porque ela tinha orgulho de dizer: minha neta lê e escreve. Escrevo. E através de mim, ela escreve também. Registro as histórias que ela me contou e as que assisti por detrás das cortinas, enquanto ela passava roupas à ferro nas casas das famílias puras. Os aventais dos doutores com seus sobrenomes difíceis de pronunciar, quase sempre bordados em azul ou verde. Para combinar com os seus olhos. As camisas impecáveis. Os uniformes dos colégios de elite que abrigavam os sagrados sucessores. Eu existia silenciosa e invisível com o aval dos patrões, fazendo uma espécie de estágio. Afinal, Vó não ia durar pra sempre. E uma suplente domesticada e habituada ao ambiente, era desejável. Não podem negar que eu estava atenta. Espiando através das roseiras, observando tudo. Pra escrever, agora. No futuro. Eu, neta de uma das tantas Marias, que podia ser, Almira, Dita, Raimunda, Ondina, Joana… minhas tias Pretas, companheiras de minha Vó, com as quais convivi e contrai ensinamentos. Faço questão de batizar personagens com seus nomes. De emprestar a elas seus jeitos, falas e charme, beleza, coragem… as homenageio. Ainda que alguém considere suas trajetórias indignas das páginas de um livro. São nossos livros, onde elas podem transitar à vontade. Ainda que os entendidos não entendam esse ajuntamento, nosso aquilombar eterno, a necessidade de estarmos juntas. Ainda que estranhem sermos tantas, já que passamos sempre desapercebidas. Os móveis e eletrodomésticos tinham mais valor que as empregadas. As recomendações para que os manejassem com cuidado, para que evitassem tombos e avarias, eram inúmeras. Com as serviçais, cuidado algum. Podiam cair desde que, ainda que feridas, se levantassem e assumissem seus postos no dia seguinte. Mesmo avariadas, que não atrasassem o café da manhã dos doutores. E dos futuros doutores. Nenhum cuidado tiveram com as suas vidas. Acompanhei o desgaste precoce de tantas. Assisti minha Vó se esfarelando. Até ser substituída por um modelo mais novo. Mas, igualmente desvalorizado.
Escrevo do jeito que consigo, do jeito que posso. Do jeito que dá. Mas escrevo. Sem artifícios, sem formação. Sem silêncio, sem sossego, sem concentração, sem constância, sem planejamento. Escrevo sem tranquilidade, sem amparo, sem comodidade e sem suporte. Mas, o mais importante é que, escrevo sem cercas. Escrevo constatando que o processo criativo é, na verdade, a oportunidade que eu enxergo sem ver. O auxílio que recaí sobre mim, enviado pelos ancestrais que seguram a minha mão, mantém meus olhos abertos e me fornecem alguma lucidez quando insisto, mesmo me sentindo esgotada. Na corrida contra as estatísticas e os pareceres imaturos dos sabedores que teimam em dizer que não é hora ainda, quando eu vivo em perigo constante. Escrevo quando resta tempo. Vou escrever pelo tempo que me resta.
Obrigada, tias Pretas! De onde me ouvirem, obrigada! Não se acanhem, fiquem à vontade, se acomodem. A casa é nossa. E não é de aluguel. É própria. Construída com a herança que recebi de vocês. É tudo nosso.


Parabéns pela lucidez e pela habilidade em articular tantas memórias e tantas poéticas. Seu texto mexeu comigo e tbm articulou memórias por aqui. Meu avô era segurança do INAMPS, fazia muito tempo que não lia essa palavra. Ele é autodidata, do polígono da seca, não teve oportunidade de estudar mas me lembro dele se esforçando pra ler Jorge Amado, ele lia em voz alta para poder compreender o texto a partir da oralidade. Eu percebia a sua dificuldade e hoje me ressinto da vergonha que sentia. Todos os avôs de minhas colegas eram doutores, fui bolsista em colégios particulares e só mais tarde consegui reconhecer que a desigualdade era projeto e não incompetência. Hoje também escrevo e percebo de forma nítida que de fato somos a materialização do sonho dos nossos ancestrais. Luto pra não ter vergonha e sim orgulho disso.
É tudo nosso.